Os dois artigos aqui reproduzidos foram escritos pelo Pastor Capelão João Filson Soren, quando se encontrava na Itália integrando a Força Expedicionária Brasileira. Foram publicados pela primeira vez no jornal Diário de Notícias, em maio de 1945, posteriormente em outros jornais brasileiros.
" neve é o branco absoluto, o branco imaculado, a alvura incomparável que nasceu das Mãos puríssimas que criaram o universo, e que desce das nuvens em flocos diminutos “como pétalas de lírios soltas ao vento”.
Quem vê a neve pela primeira vez experimenta um estranho deslumbramento, sente o enlevo dessa perfeição em branco. Algumas pessoas tem reações fortes, como escurecimento da vista, tonteiras, vertigens, nostalgias, volúpias, etc. Dizem que isso é o resultado do excesso de luz branca, e a supressão das cores no ambiente natural da vida. A luz afeta diretamente as reações emotivas. Os coloridos da natureza evidentemente influenciam, se é que em grande parte não determinam, as nuanças de nossa contextura psicológica, pelo menos no tocante ao temperamento.
O temperamento do povo italiano bem pode ser um reflexo mesológico desta terra de coloridos fortes e variadíssimos nos panoramas belos que oferece. Assim também a arte italiana. Pode melhor compreender a arte italiana quem a aprecia na própria Itália. A arte italiana é mais do que a estampa espiritual de uma raça na tela, no mármore e na pauta musical. Não representa tão somente a índole artística e a evolução de uma nacionalidade. O âmago, a alma da arte italiana tem afinidades com a Terra que lhe serviu de berço. Tem-se a impressão que só nesta terra poderia florescer esta arte. É, por assim dizer, a voz da própria terra, que fala pela apurada sensibilidade estética e artística que imprimiu aos seus filhos.
A
Sim, a arte tem pátria. E afirmar o contrário disso é contradizer os fatos mais elementares da história da arte e a própria evidência dos fatos hodiernos. Um dos característicos mais persistentes na arte são os traços da pátria de origem. Quem confundiria as obras de Rafael, o italiano, com as telas de Rembrandt, o imortal batavo? Não há características inobliteráveis que distinguem a arte florentina da flamenga? Alguém, embora com conhecimentos rudimentares da música, confundiria Wagner com Debussy, ou Tchaikovsky com Mendelssohn ? E não está o Brasil “bem brasileiro” na arte de Villa-Lobos?
Repito, pois, a arte tem pátria. E poucas coisas são mais inerentemente da pátria do que a arte genuína de um povo. O que a arte não tem é jabonismo acanhado e intolerante, bairrismo exclusivista e racismo pretencioso. Isso, decididamente a arte não tem. A arte grava as glórias de sua pátria sem aviltar a honra das demais. A arte esculpe as grandezas de sua pátria, mas não amesquinha os valores de outras. A arte imortaliza as excelências de um povo, mas não macula as virtudes dos demais. A arte é criadora. Constrói, concretiza, edifica, preserva, reúne e sublima na imortalização. A arte é uma bela lição de patriotismo. O patriotismo que não é só de palavras e discursos, patriotismo que não é aversão ao estrangeiro, patriotismo que não promove guerras mas que aproxima, associa e confraterniza todas as pátrias.
Mas dizíamos que a arte italiana é a arte da Itália. É o reflexo de uma terra de coloridos vivos, numa terra que a natureza esculpiu com audácia e formosura e cujas formas variadíssimas e deliciosos relevos se cristalizaram no gênio dos grandes escultores peninsulares; terra que canta nos regatos e nas catadupas; e se extasia na placidez azul dos lagos; terra que suspira sentimentalmente no ar puro e límpido de suas montanhas altas, e que vibra com violentas emoções nas entranhas dos vulcões; terra acariciada por um sol ameno e cortejada por três mares, que outrora lhe traziam, no dorso de suas ondas, as riquezas fabulosas que lhe opulentavam a vida.
Mas o inverno transforma o panorama. Retira todos os coloridos e veste a terra de branco. E a guerra também se veste de branco. Os soldados brasileiros, trajando as alvas roupas árticas, tornam-se quase invisíveis, mesmo a pequena distância, contra o fundo branco da neve. A neve cobre os veículos, as pontes, os canhões, as posições de morteiros, os ninhos de metralhadora, as casamatas, os abrigos, tudo enfim. E ao contemplar esse belo panorama da neve, onde tudo é branco, dando também a impressão de que “tudo é paz”, custa-se a crer que nem “tudo é amor”. Essa alvura deslumbrante que inspirou o autor do mais belo hino de Natal, abriga no seu seio a metralha e a morte, que de súbito se levantam para a destruição.
A guerra desvirtua tantas coisas dignas e excelentes, até mesmo a beleza da neve. Uma das coisas mais trágicas neste mundo é a aplicação de coisas maravilhosamente boas e sublimes para os fins do mal e do pecado. A prostituição dos valores da pessoa é o maior pecado contra a Providência. Deus criou para o bem, e o homem canaliza para o mal. Deus planeja a glória, e o homem desfigura a glória das coisas e de si mesmo, subordinando à tirania do mal os valores magníficos que Deus lhe põe nas mãos."
Itália, 20 de maio de 1945.
" Estamos numa elevação da linha de frente. Tudo está coberto de neve. Aparecem três vultos na crista de uma elevação a uns mil e quinhentos metros de onde estamos. O “jeep” que os trouxe já foi esconder-se na neve.
Os três homens começam agora a caminhar em nossa direção, descendo o morro, um atrás do outro, e, aumentando sempre a distância entre eles. Ao mesmo tempo, evitam os pontos desabrigados em que mais facilmente podem ser vistos por observadores inimigos. Em linguagem militar, estão “desenfiando” pela encosta da elevação. É perigoso caminhar em grupos na linha de frente. Uma só granada liquidaria todos facilmente.
Ouve-se subitamente um sopro chiado no ar. Granada de morteiro. Um outro uivo tremulante seria granada de artilharia. Os três homens que caminham a distância caem de bruços sobre a neve como se algo inesperadamente lhes prendesse por detrás dos pés. E logo uma violenta explosão faz voar em todas as direções uma nuvem de neve, terra, pedras e estilhaços, deixando no chão uma grande cratera a cem metros do primeiro vulto deitado na neve. Cautelosamente movem-se os três. Sabem que foram vistos pelo inimigo. Levantam-se um a um, e, distanciando-se ainda mais um do outro, procuram avançar sob o abrigo das irregularidades do terreno. É o que os militares conhecem por “aproveitamento do terreno”.
Cuidado. Novo sopro no ar. Nova queda na neve. Novo estrondo. Mas desta vez a cratera foi mais perto. Já os estilhaços da granada poderiam ter atingido o primeiro homem se permanecesse de pé. Em terreno aberto a proteção contra uma granada de morteiro ou de artilharia consiste em deitar rente ao solo. Nessa posição dificilmente o indivíduo será atingido pelos estilhaços da fragmentação do petardo. Em pé dificilmente escapará.
Depois de esperar alguns segundos, os três homens reiniciam a marcha, “desenfiando” e “aproveitando o terreno”. Lá vem a terceira granada. Os três homens já se atiraram ao solo, mas a granada vai bater a poucos passos do primeiro vulto que está estirado na neve. Nem deitado escapará. Foi muito perto. O deslocamento do ar produzido pela explosão a essa distância será fatal. Um silêncio. A granada não explodiu! Defeito da espoleta de percussão? Nada disso. Foi a Providência Divina. O Senhor dos Exércitos não permitiu a explosão daquela granada. São frequentes na guerra essas ocorrências. Ocorrências que nos ensinam a confiar em Deus e a implorar a sua divina proteção.
O inimigo está evidentemente caçando a granadas de morteiro os três homens que se encaminham para a linha de frente nas montanhas da Itália. Já estão eles caminhando novamente, mas mudaram de rumo para despistar os atiradores inimigos.
Nota-se agora que os três homens estão desarmados. É estranho. Os pesados agasalhos e o capacete de aço dificultam a identificação à distância. O primeiro é oficial. Traz um porta-cartas a tiracolo. Traz também algo no braço – é a braçadeira amarela do capelão. Capelão por aqui! Capelão Soren, do Regimento Sampaio. Atrás dele, a uns vinte cinco metros, o soldado-ajudante Pastor João Lemos. O terceiro é Júlio Andermann, o sargento brasileiro que até os italianos gostam de ouvir cantar.
Sim, hoje é domingo. Se não fossem os capelães, o domingo seria exatamente como qualquer outro dia da semana aqui na guerra. Corre rapidamente a notícia no pelotão avançado de que o capelão evangélico veio realizar culto. Os soldados que não estão nas posições de sentinela começam a chegar ao abrigo do tenente comandante do pelotão. Esquecem-se da hierarquia militar por um pouco, e abraçam o capelão Soren, alguns com lágrimas de satisfação nos olhos. São esses soldados os verdadeiros heróis da guerra. Trazem a roupa enlameada de deitar no fundo do “foxhole”. Alguns não se barbeiam há muitos dias, e há semanas que não podem sequer tomar um banho. Estão exaustos. Muitos não dormem noites e dias seguidos. As vigílias longas, as patrulhas, tiroteio, bombardeio, tensão nervosa, alimentação irregular, o frio – tudo isso vai deixando sinais muito visíveis nesses bravos heróis da infantaria.
O culto é breve. Todos os presentes participam, independente do credo religioso de cada um. Todos se sentem reanimados e retemperados. A religião assume na guerra uma realidade diferente. Já disse um famoso cronista de guerra, que “em ninhos de metralhadoras não há ateus”.
O capelão está agora se despedindo dos soldados. Mais parece uma família unida que vai separar-se. Querem que ele se demore para conversar um pouco. Mas ele explica que deverá ir ainda a outro pelotão antes de regressar. Um soldado improvisa um café com uma pequena máquina que a família lhe mandou do Brasil. O café também veio diretamente do Brasil. Não é aquele pó americanizado de gosto diferente da nossa rubiacea.
Estão agora se retirando o capelão e os seus dois companheiros. Quando já vão se afastando, um soldado o chama:
- Pastor Soren, aquela granada que não explodiu vinha mesmo para o senhor.
E o capelão responde, quase gritando para se fazer ouvir:
- É mesmo, mas
“o anjo do Senhor se acampa em derredor daqueles que o amam, e os livra”.
E ouve-se então, amortecidas pela absorção sonora da neve, as vozes daqueles soldados, que murmuram reverentemente em coro:
“Amém, amém...”
Itália, abril de 1945.
Capelão Soren